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Felizmente, alguns de nós nascemos vacinados para o vírus da insensatez

Por Marcelo Storck


Com exceção das lamentáveis 5,74 milhões de mortes em decorrência da covid-19, da aflição familiar e ao temor, nem todo o restante foi - ou está sendo - “prejuízo” econômico ou social. Há ensinamentos e evoluções forçados pela pandemia em diversos setores. Daí a nossa necessidade de maior respeito possível pela memória daqueles que se foram, infelizmente. Então, é fazer valer à pena.


Vou focar num dos pontos pelos quais estou, ao lado do econômico, profundamente afetado pelo episódio pandêmico: as aberturas que o mundo virtual proporcionou. Mesmo que, nas minhas outras atividades (jornalismo e agência digital) o sentido tenha sido inverso. Maestro autodidata que sou há 36 anos, busquei formação neste meu setor artístico específico que é a complexa arte de reger. E foi devido às flexibilizações dos decretos educacionais que pude, enfim, viabilizar a ponto de conclusão a pós-graduação em Regência Orquestral (Face/Alpha – São Paulo).

Nas tentativas anteriores, sempre certo de que nunca paramos de aprender, as custas com deslocamentos e estadia foram empecilhos. Desta feita, além da abertura para a confirmação de conhecimentos técnicos adquiridos ao longo da árdua carreira e o aprendizado de outros, o processo online criou possibilidade de comparações do ambiente cultural e político com outros locais do Brasil.


É fato: arte desafiadora por si só diante de tudo o que envolve fazer música enquanto música, a produção musical encontra obstáculos mais agudos quando se volta ao relacionamento com a esfera pública. Dessecar a cultura não é uma estratégia exclusiva e segmentada, mas uma possibilidade atrelada aos níveis de comprometimento e esclarecimento de quem as urnas - eletrônicas ou não - colocam no poder.

Sinceramente, quando eu analisava os nãos que recebemos (vide, por exemplo, o pedido do SIM pela cessão de um terreno em Porto União para erguer sua sede, coisa que ralenta há 15 anos...) eu achava que era comigo e, quando não particularizava, achava que era a falta desta sensibilidade artística na cultural ou ciúmes de quem está à frente do gerenciamento de processos públicos.


Precisei de muitos tropeços e das oportunidades da pós-graduação para entender que isso não é uma perseguição à minha pessoa (se fosse, teriam resolvido do período em que estive, por força maior, afastado por três anos do Instituto SIM). Tampouco uma exclusividade do setor cultural local.


Foi justamente pela aproximação com baluartes da música instrumental nacional que passei a perceber que o problema não está aqui, ou comigo. É pandêmico. Vejam, por exemplo, a saga que vive o projeto liderado pelo meu professor na pós-graduação, maestro Roberto Farias (foto) em Cubatão (SP). Agora, escrevo, também, como político: nem mesmo invocando a Lei Municipal n° 3944, de 9 de outubro de 2018, que declara Patrimônio Cultural Imaterial os Grupos Artísticos de Cubatão, objeto de representação junto ao Ministério Público do Estado de São Paulo o impasse da indiferença se dissolve.


Em outubro de 2021 o Poder Executivo Municipal usou em sua defesa a alegação de que a referida lei “não prevê o repasse de recursos financeiros aos grupos artísticos”, argumento esse amplamente acatado sem qualquer ressalva pela Procuradoria de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo onde o debate foi parar. Eu vou repetir. Um projeto cultural dos mais belos e importantes do Brasil, referência na América Latina, discute já no Ministério Publico o fechar de torneiras cujas consequências para a população que dele se serve são imensuráveis. Pessoas querem fazer cultura e, mesmo respaldadas em Lei, não conseguem se houver essa virulência.

E adivinha só onde mais o Maestro Roberto Farias está buscando apelação para sensibilizar a reabertura do apoio? Na imprensa... (https://bit.ly/3J87BGB). Lembrou alguém? Algum lugar? Coincidência? Ou uma realidade brasileira de quando estratégias políticas e ideológicas agem em desfavor das pessoas que se mobilizam por meio de suas propostas sociais? A covid-19, por causa dessa possibilidade de comparação que me trouxe, também confirma que há outro vírus letal para a cultura brasileira chamado insensatez. Felizmente, alguns de nós nascemos vacinados. Há de passar.


Marcelo Daniel Storck Jornalista/Maestro


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